2012/11/27

“Inimigo” por João Belo Rodeia, 2012

SER PRESIDENTE DA ORDEM DOS ARQUITECTOS


01. 
Passaram já 15 anos desde que, em 1997, participei no Encontro de Serpa, num tempo de forte optimismo entre os então jovens arquitectos portugueses, mas nem por isso menos exigente quanto à necessidade de reflexão crítica sobre a arquitectura e sobre a nossa profissão. Estive sentado do lado da assistência, longe de imaginar que estaria hoje a escrever sobre a circunstância de ser Presidente da Ordem dos Arquitectos. 
Aqueles que me conhecem sabem que raramente falo de mim próprio. Abro esta pequena excepção para dizer-vos, sobretudo àqueles que não me conhecem, que nada faria antever que alguma vez viria a ter as presentes funções. Fui para Lisboa em 1979 sem qualquer curriculum familiar ligado à arquitectura ou à profissão de arquitecto, aparte da firme vontade e desejo em sê-lo. Trabalhei intermitentemente enquanto estudava, num tempo em que a escola, a profissão e a Associação dos Arquitectos Portugueses eram fortemente endogâmicas. Recordo com orgulho o dia em que me inscrevi na AAP. Porém, durante muito tempo com ela mantive uma malaise permanente, em grande parte injusta e em grande parte provocada pelo forte antagonismo que existia com a Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Apesar disso, fui participando nas suas actividades com progressiva aproximação, procurando contribuir, passo a passo, para melhorar o estado das coisas dentro das minhas escassas possibilidades. Este meu percurso pode ser ou vir a ser o de qualquer um de vós. Se alguma coisa mudou - e muito mudou desde então - foi a possibilidade efectiva de qualquer membro da OA poder vir a ser seu Presidente, seja qual for a sua origem, a sua condição ou as suas convicções. Fiz o meu caminho a andar, com esforço, com dedicação, com algum mérito e com alguma sorte. Contei com a ajuda de muita gente a quem estarei para sempre grato. Em tudo quanto tenho feito - em alguma prática de projecto, na docência universitária, nos escritos, no serviço público - errei muitas vezes, caí algumas tantas e levantei-me do chão. Neste meu caminho - que vale o que vale, porventura não muito - foi crucial o facto de porvir de uma família comum de província que ocupava todo o espectro político disponível, mas nem por isso indisponível entre si ou para os outros. Bem pelo contrário. Aprendi a ouvir e a saber ouvir, a ser mais inclusivo que exclusivo, a tratar todos como iguais, a fazer da tolerância um valor quotidiano, a pensar a liberdade como valor primeiro. Aprendi como quase tudo é transitório na vida, procurando o mais importante entre a espuma dos dias. Inimigo tornou-se, para mim, uma palavra proscrita. Não creio, como muitos crêem, que a qualidade de uma pessoa se meça pela qualidade dos seus inimigos, mas antes pela civilidade em não tê-los. 
E, talvez por tudo isto, comecei a construir pontes entre pessoas, entre ideias, entre acções, entre vontades, entre contrários. À distância, dou por mim a acreditar que o meu caminho não teria sido de todo possível sem esta condição. Condição que - creio - ajuda muito no perfil de qualquer Presidente da Ordem dos Arquitectos. 

02. 
Aliás, ao invés de outras Ordens, ser Presidente da OA implica-o sempre no Nós como premissa, ou seja, implica a partilha de actividades e iniciativas sufragadas, de deveres e responsabilidades instituídas e públicas, de sucessos e insucessos quotidianos, não apenas com a equipa que integra, mas também com um vasto conjunto de arquitectas e arquitectos que, nos mais diversos âmbitos, colaboram na vida interna e quotidiana da OA. 
Porém, esta natureza do colectivo alarga-se a todos os seus membros. Ou seja, a premissa do Nós com o Vós é, na verdade, um duplo Nós. Tal implica ter a plena consciência de que a OA são todos os arquitectos que exercem a sua profissão em Portugal, com a sua enorme diversidade, com os seus diferentes fazeres e com distintos olhares sobre a profissão e a arquitectura. 
E esta consciência tem consequências, pois desenha, por um lado, uma forma para a missão colectiva e temporária que cada Presidente da OA representa, sempre na perspectiva de servir e de dar voz a todos, e, por outro, implica o cuidado permanente em procurar-lhes denominadores comuns, ou melhor, em ser inclusivo, em procurar não deixar ninguém de fora. 
Daqui decorre a óbvia dificuldade - que creio inultrapassável - que é da plena coincidência do duplo Nós. E, diga-se de passagem, ainda bem. Pois é essa ausência de plena coincidência que permite a democracia na OA e, em particular, o exercício fundamental da livre escolha dos seus órgãos sociais em cada mandato. É certo que a democracia não se esgota nesta livre escolha ou tão só na própria Ordem, sendo igualmente importante uma sociedade civil dos arquitectos activa e interveniente de que é sinal o próprio CPAM. 
Ainda assim, para todos quantos desejam melhorar as condições do exercício profissional dos arquitectos, para todos quantos desejam maior reconhecimento público da arquitectura, importa reafirmar que a sua disponibilidade deve ser concretizada na própria Ordem - em participação, em reflexão, em acção e em trabalho - pois é dentro e através dela, como a história associativa bem nos ensina, que tais melhorias e mudanças são efectivamente possíveis ou, pelo menos, mais possíveis. 
Foi por isso - e tão só por isso - que decidimos tentar a nossa sorte, que decidimos tentar servir os arquitectos através da OA. Chegará o momento para outros poderem fazê-lo e, tanto quanto possível, cada vez melhor, mesmo nas circunstâncias objectivamente difíceis do presente e do devir. Mas também desafiantes, entusiasmantes e estimuladoras como expectativas e oportunidades. 

03. 
Ser Presidente da OA, em partilha constante com a equipa que integro, implica uma outra premissa fundamental que é a do reconhecimento da natural inquietude ou intranquilidade de muitos arquitectos, que decorre da intensa entrega à arquitectura e do seu sentido de entrega aos outros. Mario Vargas Llosa, um dos meus escritores favoritos, fala da razão disto mesmo ao afirmar que o arquitecto ficciona realidades, ou seja, substitui ilusoriamente, em cada projecto, o mundo concreto e objectivo da vida vivida por um mundo ficcionado de uma vida melhor. 
Neste sentido, esta ficção é uma mentira que encobre uma verdade profunda, ou seja, ela é a vida que não existe e que, por isso, o arquitecto decidiu inventá-la para si mesmo e para os demais, ou a vida que ainda não foi mas que poderá vir a ser um dia. Este jogo não é inócuo. Produto da insatisfação íntima e legítima contra a vida tal como é, é também fonte de mal-estar e de insatisfação, pois quem vive uma grande ficção regressa à vida real com uma sensibilidade muito mais alerta diante das suas limitações e imperfeições, tanto mais quanto esta é quase sempre bem mais medíocre do que a inventada e desejada. Esta inquietude ou intranquilidade do arquitecto diante do mundo real que a arquitectura alimenta, sempre na convicção de poder construir um mundo melhor para si mesmo e para aqueles que serve, empenha-o numa luta generosa, quase quixotesca, mas sempre desigual, pois raramente os dois mundos - o real e o ficcionado - coexistem num só. Tal lhe não retira, porém, qualquer legitimidade. Bem pelo contrário, a possibilidade de mudança e de melhoria na profissão, na arquitectura e de ambas na tentativa de construção de um mundo melhor decorre da tomada de consciência disto mesmo, ou seja, do equilíbrio entre a necessidade de ficcionar, antecipando realidades, e a possibilidade em concretizá-las. 
A própria Ordem, pela sua natureza normativa, não escapa a esta litigância e compreende-se que muitos arquitectos tanto admitam a sua necessidade como, em simultâneo, mantenham com ela alguma distância. 
Certo é que em tempos de grandes dificuldades como aqueles em que vivemos, acentua-se tal distância entre estes dois mundos e, com ela, a inquietude, a intranquilidade ou mesmo a angústia de muitos que, diga-se de passagem, nós próprios partilhamos dentro da Ordem. Creio ser este o pano de fundo do CPAM, cujo sucesso decorrerá da aproximação destas duas realidades. É igualmente com este pano de fundo que na OA, todos os dias, procuramos antecipar realidades ficcionadas e, a pulso, concretizar realidades possíveis. 

04. 
Nesta justa medida, considerando o quadro de missão da OA e aquilo que de nós apenas depende, não abdicamos do compromisso estabelecido com os arquitectos, ainda que a Ordem, tal como as demais Ordens e Associações Públicas Profissionais, enfrente hoje forte adversidade na interlocução com o actual Governo que, aliás, não respondeu até ao momento a qualquer das nossas propostas tendentes a melhorar as condições para o exercício profissional ou a constituir um novo quadro de oportunidades para a encomenda de projecto no âmbito dos bens imóveis do próprio Estado. Nem sequer a Política Pública de Arquitectura, vital para o reconhecimento pleno da Arquitectura e para o Direito à Arquitectura, mereceu ainda justo acolhimento pela tutela, mesmo quando prevista em normativa nacional e em directrizes comunitárias. 
Na verdade, em face da mais difícil conjuntura profissional de que há memória recente, o Governo mantém-se claramente sem rumo e sem visão de futuro para a arquitectura e para os arquitectos, senão mesmo para o País. 
Por isso, nem nos resignamos, nem desistiremos de bater-nos pelos objectivos fundamentais que estabelecemos para o presente mandato. Mas não tenhamos ilusões. Por mais que tentemos, por mais que façamos, nem a OA conseguirá ajudar a criar emprego, encomenda e oportunidades a curto e médio prazo, nem esgotará as possibilidades múltiplas de intervenção dos arquitectos. Na verdade, num País com tanto ainda por fazer e em que o Direito à Arquitectura está longe de ser um dado adquirido, uma das grandes mais-valias da nossa profissão continuará a residir na nossa imaginação, ou seja, na nossa capacidade de ficcionar o futuro. 
Importa, pois, que a sociedade civil dos arquitectos, nos seus diversos domínios e âmbitos de actuação, reflicta sobre a profissão, reequacionando-a, imaginando novas formas de participação na sociedade e identificando novas oportunidades, sendo certo que grande parte destas, designadamente no domínio do projecto, encontrar-se-ão na reutilização arquitectónica, na regeneração urbana, na sustentabilidade do edificado, em melhor habitação para todos e na possível internacionalização dos nossos serviços. Muito de tudo isto depende de nós próprios e da nossa capacidade organizativa, prospectiva e empreendedora. 
Pela nossa parte, estamos convictos de que conseguiremos legar aos que vierem depois de nós uma Ordem melhor do aquela que encontrámos, na certeza de que haverá sempre muito para fazer e para melhorar. Perguntar-me-ão se estamos satisfeitos com o trabalho realizado na OA. A resposta é simples: não estamos, nem nunca estaremos, enquanto subsistirem precariedade e condições incompatíveis com o exercício da nossa profissão, ou a falta de pleno reconhecimento da Arquitectura como um direito de todos e como um recurso fundamental para melhorar a vida dos nossos concidadãos. Por isso, ainda que em tempos muito adversos, mantemos a mesma ambição em ficcionar o futuro e a mesma perseverança em concretizar alguma dessa realidade imaginada, desde logo continuando o trabalho de reestruturação orgânica e financeira da própria Ordem, em parte já concluído. Aprendemos, todos os dias, com os sucessos e os insucessos. Aprendemos, todos os dias, com os contributos generosos de muitas arquitectas e de muitos arquitectos. Aprendemos, todos os dias, com as razões e os protestos de alguns outros. 
Uma coisa é certa. Ser Presidente da OA, ser membro de qualquer um dos seus órgãos sociais, implica hoje alguma coragem, muita disponibilidade e é claramente uma ocupação de alto risco. Mas, nestes tempos em que tantos depreciam o serviço público, procuramos honrá-lo e dignificá-lo. Enquanto arquitectos, não há decerto melhor lugar para fazê-lo que na OA. E não há decerto melhor forma de fazê-lo do que procurar sempre fazer - em cada proposta, em cada acção, em cada iniciativa - o que melhor sabemos e podemos. Pois, quem faz o melhor que sabe e pode, faz sempre o melhor que deve fazer.