2012/11/06

“Inimigo” por Pedro Bismarck, 2012

Anjos vazios / cidadãos sem voz




Quando considero o homem contemporâneo eu vejo-o como uma cantora de coro, que abre e fecha a sua voz sincronizada com o ritmo da música, mas sem pronunciar qualquer nota. Afinal de contas, todos os outros estão a cantar! Ela finge que canta porque está convencida que a voz dos outros é suficiente. Ela comporta-se assim porque perdeu a fé na significância das suas próprias acções. O homem contemporâneo é sem fé, totalmente sem esperança na sua capacidade de influenciar a sociedade onde vive através do seu comportamento.

– Andrei Tarkovski, Entrevista a Gideon Bachman 

Negligencia-se muito facilmente hoje em dia que os seres humanos são média primários…são potenciais mensageiros, do grego ‘angeloi’, anjos, informadores do estado de coisas…Vivemos em nós uma grande morte dos anjos – as últimas pessoas são anjos vazios, não-mensageiros, homens mudos…Para os deserdados e despiritualizados, não existe missão, não existe transmissão, nenhuma mensagem a passar… 

– Peter Sloterdijk, Ensaio sobre a intoxicação voluntária 

Habituamo-nos, desde algum tempo para cá, a declararmo-nos convictamente cidadãos, designação que surge frequentemente associada a uma certa e curiosa adjectivação: responsável, consciente, etc… Mas nenhum de nós (excepto aqueles que tomaram para si essa actividade) se qualifica a si mesmo de político. E, no entanto, politico e cidadão, isto é, o politikon e o civis, partilham uma certa afinidade, já que ambos designavam os habitantes que constituíam, respectivamente, a comunidade da polis grega e da urbe (civitas) romana. Contudo, há entre estes dois termos e na sua origem uma essencial distinção que não só subsistiu ao longo de todo processo histórico como permitiu, inclusive, que estes viessem a designar coisas substancialmente diferentes. Aquilo que está em causa nesta crise actual, não crise da economia ou das finanças, mas crise da democracia e da política, tem precisamente um dos seus hipocentros nessa fractura que se operou entre a palavra polis (cidade) e a palavra civitas (cidade) e que faz o núcleo do actual sistema em que vivemos. Um modelo que ao oferecer-nos o jardim encantado mas sem frutos da cidadania, retirou-nos a possibilidade de um acesso quotidiano à política. Fruto precioso, o da política, que para Aristóteles, era a mais alta condição a que todo o homem livre devia aspirar. 
O que poderá ser ainda essa natureza política que nos pertence? E como poderemos incorporar essa politicidade no jardim vazio de uma cidadania e de um quotidiano que perdeu a sua voz e a sua palavra, isto é, que deixou de acreditar na relevância política das suas acções na coro-geografia da polis, é a tarefa-crítica, tanto individual como comum, que urgentemente nos cabe pensar.